A provocação para este texto surgiu da minha esposa: “Por que você não escreve ou posta nada sobre mim em suas redes sociais?” Pergunta para qual não tenho resposta. E nada do que eu disser surtirá efeito algum. O que resta então é tolerar alguns momentos tensos e torcer por uma ideia apaziguadora. A minha esposa e grande parte da família dela é parnanguara e na sua cidade natal, além de outras coisas, repousa quase que adormecido o Leão da Estradinha: O saudoso time de futebol Rio Branco. Time que disputa o campeonato paranaense, mas que há tempos não conquista nenhum título significativo. Este texto é uma tentativa de assistir ao lado dela um jogo do Leão da Estradinha, como forma de reparar tal desatenção. A busca por assistir a um jogo do time é , portanto, o mote para esta escrita. Um gesto simbólico. O fantasma de algum lugar, um ritual antigo, o mais que centenário Leão da Estradinha e seu rugido.
Apoiando-me em algumas características que compõem a sua terra natal: os rituais abandonados, os edifícios em ruínas e os detalhes que sobreviveram ao tempo. Margeando o tema principal e sem nenhum compromisso com pontos turísticos. É, antes de tudo, um caminhar vagabundo. Defendendo-me da pergunta que não sei responder, senão através da escrita. Formular uma tese contra as fatídicas descobertas no caminho. Apoderar-me de um fragmento da sua terra e da sua história, na fabricação de um texto evasivo como o porto. Cheio de desvios e rotas sem saídas. A estradinha perdida onde o Leão hiberna, o resistente estádio Nelson Medrado Dias, localizado no meio da Estradinha. A família da minha esposa ao redor da mesa comendo caranguejo com pirão de feijão e salada de cebola. O que foi solapado pelo tempo, pela História, pelo sistema, o que beira a extinção: os cemitérios, os produtos típicos esquecidos nas prateleiras dos supermercados e bares em ruínas. Os bêbados esquecidos nos bares. As igrejas, que não são poucas, passam ao largo dessa narrativa. Deixando delas apenas apenas o silêncio e o repouso contra o sol. Ou melhor, interessa-nos apenas como escombros e ambientes abertos durante o dia para o nosso silêncio. Um refúgio do sol a pino do meio dia.
As tradições culturais como o fandango, o boi de mamão também. Já ocupam o seu lugar no museu e, mesmo que marginalizadas, já são integrantes da narrativa oficial. Já foram transformados em folclore. Mas não os comércios velhos do Centro Histórico da cidade com suas paredes descascadas, o Mercado de Peixes. Pensar Paranaguá é pensar na sua decadência, suas ruínas: monumentos, patrimônios históricos e aspectos culturais. Toda a sua tristeza sob o sol da tarde. As coisas que resistem ao esquecimento. O caranguejo ardendo dentro de uma panela com água e sal, empurrando a tampa para sair. Tal qual a cidade, a família: um panelão com caranguejos dentro puxando o que sai para retornar para dentro. Ler a cidade através das suas ruínas é ter em conta a ação do tempo sobre os seres e as construções. O sol e a maresia corroendo dia a dia a pele, as casas e as embarcações. Paranaguá é a sombra de um horizonte povoado por seus habitantes, frequentando lojas, igrejas e bares. Pessoas alheias a sua História. A maresia e o sol dão polimento para cada um deles, assim como as estátuas sem nomes. Desde o caiçara cada vez mais raro às donas de casa em seu trânsito até os supermercados. A sua estrutura familiar é muito presente e a sua formação cultural é muito tradicional. Todos os filhos e filhas ao redor da mesa na noite de Natal.
Pensar em Paranaguá é antes de tudo se esquivar da história oficial, cortar a rua, dobrar a esquina errada, se perder para sempre. As descendências de filhos de prefeitos que estudaram fora. As crianças nos pátios escolares. Ruas que dão para algum lugar com casas e comércios fechados. Se ausentar dos passeios turísticos. Escapar das lendas dos portos, das famílias tradicionais e suas ramificações que perduram, mesmo que já enfraquecidas, até os dias de hoje. Da concentração de riqueza para longe do porto, do escoamento sem fim dos grãos através do oceano. Escrever sobre uma cidade não é exaltar a natureza ou a cultura.
Os povos extintos como os índios carijós. É fugir do museu e do folclore. A narrativa de uma cidade é permeada pelo vazio, as lacunas, a falta de sentido, o desconexo das ruas e as encruzilhadas. Um olhar estrangeiro. Longas caminhadas por estradas e poucos comércios abertos. A noite silenciosa e chuvosa. É atravessar a circunvizinha Ilha dos Valadares até a associação distante de Cultura Popular Madicuera, onde se dança o Fandango. Tomar uma dose de cataia em um bar qualquer. Texto feito das picadas dos mosquitos (porvinhas) e dos raios de sol. Ou observar os cães de rua, fundamentais para a formação das famílias. Os protetores da casa, os habitantes solitários da cidade. Eles são agentes diretos do clima e da rotina. Os salões de cabelo e as lojas de fotografias.
Uma curva no cristinianismo, onipresente nas ruas, nas construções e no povo, personificado nas várias igrejas espalhadas. Mas a religião cristã permanece, da igreja neopentecostal mais simples ao culto dos negros na Igreja São Benedito. A primeira igreja católica do Paraná, construída em quatro anos sobre os ossos de escravos. Sacrificados na sua construção. O moralismo e o conservadorismo são imperativos. Desnaturalizar e desfamiliarizar a relação com a cidade é fundamental para a sua descrição, tratando-se apenas, no fim das contas, de um recorte, uma interpretação. Fugindo do turismo e optando por um caminho errante, cheio de pontas soltas e pontos de interrogação, feito o término de uma relação: seus nós cegos. Visitar Paranaguá é como terminar uma relação, fugindo covardemente da palavra final. É como escapar da decisão, deixando as pontas soltas para um futuro estopim. Desde a epopéia cotidiana de James Joyce, "Ulisses", onde temos um mapa moderno da desmistificação do heroísmo de uma cidade. O texto a seguir não tem tal pretensão de detalhes mas bebe desse espírito, uma cidade é uma miríade. Na qual o intuito não é o de celebrar, mas o de vivenciar através da escrita um pouco dessa aventura: o gosto do Cini de Framboesa, o gosto do café Mulatinho, do caranguejo escaldado, do caldo de cana, etc.
Paranaguá é uma cidade antiga, fundada em 1648, de aspecto colonial e decadente por causa disso, pelo seu desmanchar lento através do tempo. Uma das primeiras cidades portuárias do Brasil. Faz parte das suas características intrínsecas as construções antigas: comércios, bares, lojas, restaurantes, quiosques e biroscas. O cheiro azedo da soja derramada pelos caminhões se funde com o cheiro dos caranguejos nesta época do ano. Caranguejo é também o nome dado ao seu principal estádio, o Esportivo Fernando Charbub Farah ou, então, Gigante do Itiberê: O Caranguejão.
Ao redor do estádio, nas imediações da cidade, vemos a população em suas bicicletas, meio de transporte essencial da cidade. É possível ver os traços de personalidade de seus usuários em cada bicicleta. Homens, meninas e velhos. Os caiçaras tomando cerveja no bar, comprando peixe dos pescadores fora da rota do Mercado Municipal. Embaixo da ponte que liga Paranaguá com a Ilha dos Valadares, locais conhecidos apenas por seus habitantes mais antigos. A vida tão próxima ao mar exige forte espírito de adaptabilidade e resiliência. A vida longa se deu talvez pelo exercício da pesca e outras atividades ligadas ao trabalho braçal e a dieta alimentar baseada no peixe. A grande quantidade de filhos também é característica das gerações anteriores. As pessoas tendiam a viver por muito anos, quando não afetadas pelo álcool.
Os comércios familiares: pai, mãe, filho, filha, genro e nora. O comércio lotado e a família se desdobrando em mil para atender a todos. Principalmente, os que não deixaram sucessores ou não venderam suas franquias para empresas maiores. Interessa os que têm prazo de validade mas ainda persistem, os comércios decadentes: lojas de sapatos, roupas e barbearias. As já extintas videolocadoras. As livrarias evangélicas em sua quase totalidade.
O espírito do tempo é a decadência, é o que o capitalismo não cessa de produzir: cidades fantasmas. Cidades empobrecidas, quintais de exportações. Pouso de marinheiros e a prostituição de jovens. As ruínas, os resíduos. Uma cidade é um acúmulo de desperdícios. Você cruza uma rua, entra em um bar e toma uma gasosa Cini de Framboesa, enquanto observa o vazio ensolarado da rua. As pessoas se movendo para algum compromisso, para algum trabalho.
Pedras, sambaquis e óleos de baleia. O mercado de escravos, o pelourinho e o trabalho braçal intermitente. Pesca e outras atividades agrícolas, a pecuária e os comércios. Os imóveis antigos, aquele bar, birosca ou botequim esquecido num canto da cidade. Perto da rodoviária, em uma esquina. Homens bebem enquanto conversam sobre assuntos cotidianos. O jogo do bicho é um deles. Ao lado a barbearia, onde o barbeiro com sua navalha espumada faz a barba de um nativo. Os telhados das casas cobertos de musgos, paredes desbotadas e a ferrugem. O cheiro inegociável da soja azeda. Uma província onde pássaros e cigarras cantam à noite e durante o dia. A pastelaria centenária é um monumento da cidade. Assim como as casas antigas e os rendez-vous.
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